[RESUMO] Documento desconhecido a que a Folha teve acesso no acervo de Rubem Fonseca indica que o escritor pediu demissão de seu posto no Ipês, organização empresarial que apoiou o golpe de 1964, em 9 de abril daquele ano, poucos dias após a tomada de poder pelos militares. Naquela data, foi instituído o Ato Institucional Número 1, que permitiu a cassação de mandatos da oposição. Duas décadas depois, Rubem Fonseca afirmou ter integrado uma ala democrática da organização e que dela se afastou após o golpe, o que é contestado por historiadores. O escritor, um dos maiores do Brasil, completaria cem anos neste domingo (11/5).
Nove de abril de 1964 foi um dia tumultuado, para dizer o mínimo. Os militares tinham acabado de tomar o poder e, naquela data, com o Ato Institucional Número 1, suspenderam inúmeras garantias democráticas. Na lista de cassados em seguida constavam nomes como João Goulart, Leonel Brizola e Rubens Paiva. Era o início de uma ditadura que duraria 21 anos.
No mesmo dia, o escritor Rubem Fonseca —executivo da Light, mas nos primeiros passos de sua carreira literária— redigiu uma carta ao presidente do Ipês (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), organização empresarial que tinha participado da conspiração contra João Goulart.
“Meu caro [Haroldo] Poland”, bateu o autor à máquina, “venho pela presente solicitar minha demissão da Comissão Executiva do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. Levam-me a isso razões particulares a que não posso deixar de atender”.
No documento, o autor também defende que o Ipês continue se dedicando a uma agenda de “reformas de base”.
A missiva está entre as centenas de papéis no acervo do escritor, a que a Folha teve acesso. O material, hoje em cerca de 60 caixas, foi encontrado pela filha de Rubem Fonseca, Bia Corrêa do Lago, no apartamento do pai depois da morte dele, em 2020.
Ao que tudo indica, o documento só está preservado ali. A reportagem fez uma busca nos arquivos do Ipês, no Arquivo Nacional, mas não encontrou uma cópia da correspondência.
A carta acrescenta um novo elemento a uma controvérsia que marcou a biografia de Rubem Fonseca, uma das mais notórias vítimas da censura no regime militar. Nos anos 1980, pesquisas revelaram que ele havia integrado a cúpula do Ipês —o que, como consequência, poderia torná-lo cúmplice das articulações pelo golpe de 1964.
A participação no Ipês, aliás, foi um dos poucos assuntos sobre os quais Rubem Fonseca falou na imprensa. Em um texto de 1994 na Folha, por exemplo, ele dizia que havia dois grupos dentro do instituto: um golpista e outro reformista e democrático, ao qual ele pertencia. Também disse ter se afastado da organização depois do golpe.
A carta de demissão parece dar lastro à versão do escritor sobre seu afastamento. “A carta não me surpreendeu, mas fiquei feliz de a ter encontrado”, diz Bia Corrêa do Lago, acrescentando que o documento reforça o que ouvia em conversas privadas com o pai.
Foi em 1981 que a participação de Rubem Fonseca no Ipês, então como diretor da Light, empresa de distribuição de energia que financiou o instituto, veio à tona pela primeira vez. Naquele ano, saiu o livro “1964 – A Conquista do Estado”, do cientista político uruguaio René Armand Dreifuss, pioneiro ao revelar a atuação dos empresários para derrubar o governo João Goulart —sustentando que o Ipês teve papel crucial nesse processo.
Pela análise de Dreifuss, o instituto se apresentava em público como algo inofensivo, apenas um think tank disposto a auxiliar o país em reformas. No entanto, estava envolvido em ações secretas e produzia peças de propaganda para influenciar a opinião pública.
O Ipês contou inclusive com a participação dos militares. O general Golbery do Couto e Silva, um dos militares mais influentes da ditadura, foi uma das lideranças da entidade. Golbery não só ajudou a traçar a estratégia da organização, mas também coordenou o levantamento de dados sobre brasileiros considerados subversivos.
Quando saiu o livro de Dreifuss, Zé Rubem, como os amigos o chamavam, já era um escritor famosíssimo. Não foi à toa que, de tantos nomes citados na obra, o seu tenha chamado a atenção.
Dreifuss descobriu que ele coordenara o núcleo editorial do Ipês, mas, como a pesquisa não é especificamente sobre o escritor, não chega a se estender em detalhes da trajetória dele —ou a mencionar um eventual afastamento da entidade.
Logo depois da publicação do livro, Rubem Fonseca publicou um artigo no Jornal do Brasil (uma cópia do texto está preservada em seu acervo). Nele, desenvolve pela primeira vez o argumento das alas reformista e conservadora do Ipês e minimiza o papel da organização no golpe.
O escritor lembra ainda que, quando os militares tomaram o poder, não foi ocupar um cargo no governo federal porque não quis. Diz que, quando o governo comprou a Light, foi um dos primeiros diretores a serem demitidos. E recorda o rumoroso caso de censura a seu livro “Feliz Ano Novo”, em 1975 —o volume de contos só voltaria às livrarias com a reabertura.
A historiadora Heloísa Starling, que foi orientanda de Dreifuss e chegou a pesquisar o Ipês em Minas Gerais, diz ver com ceticismo a explicação do autor.
Em seu novo livro, ainda inédito, ela dedica um capítulo à entidade empresarial. Na obra, sustenta que a fase final do plano do instituto —aliado a uma facção das Forças Armadas— era ocupar o Estado.
“O Ipês é o braço empresarial do golpe, não há ala democrática lá. É como o que vemos hoje, usavam o discurso da democracia para subverter a democracia. Mas não acho que Rubem Fonseca estivesse interessado na ocupação do Estado”, diz ela.
“Várias pessoas participam ativamente e depois se arrependem. Os efeitos dos atos institucionais podem ter funcionado de gatilho para uma compreensão maior. Podemos calçar os sapatos do morto nisso.”
Já nos anos 2000, outras pesquisas sugeriram que Rubem Fonseca fosse o autor dos roteiros dos filmes do Ipês, produzidos por Jean Manzon, lendário fotógrafo de revistas brasileiras. Mas esses estudos apoiam a acusação em evidências frágeis, enquanto trabalhos posteriores afirmam que os filmes do instituto eram iniciativa principalmente da unidade de São Paulo e que o papel do escritor neles foi superestimado.
Contudo, historiadores têm apontado documentos no acervo do Ipês, no Arquivo Nacional, que parecem contradizer a carta de demissão.
Por exemplo: em 27 de março de 1968, Haroldo Poland, presidente da entidade, comunica numa carta a Rubem Fonseca que o autor foi reconduzido, por unanimidade, para o Conselho Orientador do instituto; chama-o de “caro amigo dr. José”. Além disso, a ata de dissolução da organização, em 1972, tem a assinatura do escritor.
Segundo Bia Corrêa do Lago, o pai continuou oficialmente no quadro do Ipês porque era executivo da Light, mas se afastou do dia a dia da entidade.
“Ele deixou de ir às reuniões do Ipês. Como a Light ainda estava ligada ao instituto, ele continuou ligado de alguma maneira, mas sem ações na prática”, diz ela, acrescentando que o pai era contra a deposição de João Goulart e que está contratando uma pesquisadora para investigar os arquivos do instituto.
A filha do autor vem trabalhando no acervo do pai para uma fotobiografia em celebração do centenário dele. Ela afirma que os papéis permitem um olhar abrangente sobre as posições políticas do escritor —inclusive com uma atuação de juventude contra o Estado Novo de Getúlio Vargas. Segundo Bia, o homem que surge dos documentos tem credenciais democráticas.