RENATO S. CERQUEIRA/ATO PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
No ponto de ônibus, a sensação térmica beira os cinquenta graus
Enquanto tento, em vão, dormir, me vem à mente — castigada pelo cansaço e pelo calor — todos os programas de culinária que já vi em minha vida. Penso que, talvez, esses programas possam inovar seus ingredientes, incluindo a “carne” do cidadão, que se vê obrigado a vivenciar sensações térmicas que variam dos 50 aos 60 e poucos graus, como um ingrediente principal. Quando associada à poluição intensa das cidades, essa realidade transforma ambientes domésticos, como o quarto, por exemplo, em uma câmara de defumação durante a noite. As paredes, que passaram o dia absorvendo o sol implacável, agora irradiam calor como se fossem brasas invisíveis.
A brisa quente que entra pela janela aberta e atravessa o ambiente não traz alívio — é como se alguém tivesse ligado um circulador de ar dentro de um forno. O ar move-se, mas não refresca; apenas espalha o calor que insiste em grudar na pele, como uma marinada densa e pegajosa. Sinto-me como um corte de carne exposto à fumaça, lentamente absorvendo o sabor do ambiente, que não é exatamente saboroso, mas sim sufocante.
A sensação é de estar sendo preparado lentamente, sem pressa, como naqueles programas culinários em que o chef explica, com calma, como a fumaça penetra nas fibras da carne, conferindo-lhe um sabor único. Só que, aqui, o sabor não é de especiarias ou temperos — é o do suor, o do cansaço, o do ar pesado que parece grudar no céu da boca, como se o próprio ambiente estivesse me marinando em seu calor opressivo.
Aguardo o despertador tocar. Ele toca. Eu me levanto já me sentindo dentro de um forno de convecção. Iniciando minhas atividades na rua, o sol das 7h30 da manhã reflete no asfalto escaldante, e o vento quente que bate no rosto mais parece a circulação forçada de um equipamento que não desliga. Não há árvores para filtrar a luz, nem sombras para amenizar o calor. Só o amplificam. Incapaz de absorver o calor, a cidade o devolve em ondas sufocantes.
Paredes, pisos, asfaltos e construções de concreto funcionam como resistências elétricas gigantes, irradiando calor para todos os lados e assando impiedosamente quem se atreve a sair de casa. Somos como pedaços de carne magra deixados ao relento, expostos ao calor seco que nos resseca por dentro e por fora. Aos poucos, evaporamos, gota a gota, como um peito de frango esquecido na airfryer por tempo demais: sem suculência, sem graça, apenas a secura insistente de um ambiente que não foi feito para nos abrigar, mas para nos cozinhar.
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No ponto de ônibus, a sensação térmica beira os cinquenta graus. O sol inclemente pré-aquece as ruas, já quentes desde o dia anterior, e o ar pesado circula como um fluxo de calor constante. Nós, os “alimentos”, somos assados lentamente. Quem não tem sentido isso nas últimas semanas? A pele fica dourada, o suor escorre como um molho que evapora antes mesmo de tocar o chão, em um processo lento, quase cruel, mas uniforme. Todos sofrem igualmente, seja no ponto de ônibus, na fila do mercado ou no trânsito parado. O forno urbano não poupa ninguém: ricos, pobres, jovens, idosos, crianças, animais pois todos têm a chance de virar assados suculentos, ainda que exaustos.
No centro da cidade, o asfalto e os pisos modernistas de concreto — cujas ideias impostadas não funcionam nem em seus países de origem — fumegam, criando aquela ilusão de água no horizonte, como se fossem uma miragem. Mas não se trata de uma miragem qualquer. É um micro-ondas gigante, irradiando ondas de calor que aquecem de dentro para fora. A febre sobe do corpo à cabeça, a boca fica seca, o nariz ardendo e o suor, que mal escorre, não chega a refrescar.
O vapor da cidade cinza, impermeabilizada por todos os políticos que por aqui passaram, nos envolve como se fôssemos pratos girando em um prato de vidro invisível. O calor não vem de todos os lados, mas em ondas, em rajadas que queimam sem aviso. Um minuto você está bem, no outro, está sendo cozido por dentro, como se o corpo não conseguisse decidir se está quente ou frio. É um preparo desigual, que deixa alguns malpassados e outros super cozidos, dependendo de onde estão e para onde vão.
Na hora do almoço, para quem pode, o alívio está nos escritórios climatizados, mas basta um passo fora para sentir o choque térmico de uma fritadeira elétrica. O ar quente que sai dos motores dos carros, das tubulações, dos geradores de ar-condicionado nos mergulha em óleo fervente sem qualquer cerimônia. E assim passamos o dia, entre a fritura das ruas e o congelamento dos ambientes fechados. A crosta se forma rápido: narizes vermelhos, mãos ásperas, lábios rachados.
Por dentro, porém, ainda há um pouco de calor, uma resistência que nos mantém em movimento, mesmo que seja só para buscar um café quente ou um casaco mais grosso. Você adoece, vai ao postinho e o clínico geral que atende conclui: é virose. Lá vou eu de dipirona, remédio que aparentemente cura qualquer coisa. É prescrito como os chás milagrosos de ervas de qualquer curandeira do interior.
À noite, o calor deveria dar trégua, só que não. As construções seguem irradiando tudo o que acumularam durante o dia, como um forno elétrico que acabou de ser desligado. O concreto quente assa devagar, cozinhando corpos exaustos que tentam dormir. A cidade não descansa, não resfria, não respira. O processo é lento, quase cruel, mas uniforme. Todos sofrem igualmente, seja no ponto de ônibus, na fila do mercado ou no trânsito parado. O forno urbano não distingue cortes: ricos, pobres, jovens, idosos — todos acabam virando assados suculentos, ainda que exaustos.
E assim seguimos, de um dia para o outro, refogados, grelhados, assados, tostados. Como alimentos esquecidos em um ambiente que não foi feito para nós. A cidade, nada resiliente, não foi feita para nos abrigar, mas para nos transformar. Assados, fritos, cozidos ou ressecados, somos o prato principal de um cardápio que não escolhemos. Resta saber: quando é que alguém vai desligar o fogo?
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.