Um pedaço do jardim, recortado num metro quadrado extirpado da terra, é elevado aos céus, um rasgo no tecido verde ofertado em sacrifício. Do chão, ninguém vê as folhas e flores lá no alto, só o mastro que separa a terra firme dessa arena celeste.
O pilar é a mensagem, a medida do que aparta a vida pedestre do paraíso, distância de tudo o que nos isola ou blinda, reles mortais, da grande beleza invisível. Já diz o Alcorão que Deus criou o céu e a terra e tudo o que está no meio.
Esse caminho do meio, talvez tudo o que se possa chamar de vida real, espasmo entre nascimento e morte, é a base desta Bienal de Artes Islâmicas, a segunda da história, em Jeddah. E o trabalho da dupla Joana Hadjithomas e Khalil Joreige é a mais perfeita, senão literal, manifestação desse conceito.
Os libaneses, nomes centrais da arte de um país marcado por guerras e tragédias desde sempre, foram óbvios na ilustração do tema da mostra, mas não por isso menos potentes. Estamos, afinal, debaixo das tendas do antigo aeroporto exclusivo aos peregrinos destinados a Meca, um deserto na Arábia Saudita hoje retalhado pelos avanços da especulação imobiliária à sombra de outra onda diplomática, que visa o “soft power” nas artes visuais como saída do atoleiro petrolífero, indústria que sustenta uma ditadura violenta, longe de ser sexy como são suas novas galerias de arte reluzentes.
Nos bastidores da exposição, organizada pelo egípcio Abdul Rahman Azzam, pelo ruandês Amin Jaffer, pelo britânico Julian Raby e pelo saudita Mohannad Shono, está, de fato, um esforço nítido de pintar outro quadro de um país onde monarcas mandam assassinar seus desafetos, à moda medieval, mulheres não podiam dirigir automóveis até oito anos atrás e gays nem sequer podem existir ainda hoje.
Tudo são flores, só que não. Vemos pétalas estraçalhadas, carbonizadas ou mortas em várias das obras. É uma visão mais colorida da realidade, mas não menos tétrica, dado que sustenta a inesperada voltagem política de uma mostra a princípio bem podada.
Na instalação da jordaniana Raya Kassisieh, retrato do que parece ser a morte na certa, enormes rosas negras metálicas brotam de um pântano leitoso. Perto dali, Ala Younis, do Kuwait, cultiva numa estufa as flores dizimadas da Faixa de Gaza, rosas, crisântemos e cravos. São as vítimas mais improváveis da carnificina em curso no território. A artista preserva aquilo que não existe mais —a guerra interrompeu a exportação dessas flores palestinas e cortou mais um canal de renda para quem já não tem nada.
O japonês Takashi Kuribayashi, lembrando aqueles que ainda têm alguma coisa, sufoca uma árvore com pilhas de barris de petróleo, numa instalação que leva o público a observar toda a desgraça ao redor do alto de uma plataforma escura que cerca a planta. Tudo dói.
E tudo mal se equilibra. O italiano Arcangelo Sassolino ancora seu retrato do mundo atual num grande disco de petróleo, um painel circular preso à parede da galeria coberto por uma grossa camada de óleo industrial. À medida que a coisa gira, o líquido toma as feições de um grande mar negro agitado e vai vazando pelas beiradas. É como sangue vertido numa batalha pela sobrevivência.
Não é nada estranha essa ideia de movimento circular como metáfora para a vida e a morte neste que é o lugar mais sagrado do islamismo, manifestação religiosa que tem seu ápice no movimento dos fiéis em torno da Caaba, um redemoinho de fervor espiritual que marca a jornada rumo a Meca.
Um dos momentos de contraste e diálogo mais belos de toda a mostra, o disco da morte, ou da vida, de Sassolino gira diante de um mural desenhado sobre uma parede circular, só traços pretos sobre o fundo branco. A obra monumental do francês Abdelkader Benchamma abraça sete antigos pilares resgatados de uma mesquita, estruturas de conchas do mar típicas da costa saudita, fragmentos que talvez chegassem à praia daquele oceano de petróleo que vemos rodar logo ali.
Um minúsculo ímã provoca o mesmo movimento numa sala perto dali. No trabalho do saudita Ahmed Mater, o pequeno cubo preto metálico põe em marcha uma imensidão de partículas de ferro ainda menores, um turbilhão que roda em torno do centro num equilíbrio de forças, entre atração e repulsa.
Outro vórtice inflama o trabalho da taiwanesa Charwei Tsai, um desenho sobre vidro transparente em que duas ondas de traços rodam em direções opostas, um furacão prateado que remete à expansão cósmica. É sua resposta a um prato de cerâmica de mais de mil anos encontrado em Samarcanda, no coração da antiga Rota da Seda no atual Uzbequistão, obra emprestada do Louvre agora na mesma galeria, em que uma inscrição em árabe diz que a tolerância é amarga de início, mas depois se torna mais doce que o mel.
É uma lição em falta no mundo atual, mas não deixa de ser um sopro de esperança. Os círculos, nessa mesma levada minimalista, vão se multiplicando. E os traços, antes preto no branco, vão se tornando cada vez mais transparentes nas obras dessa ala, talvez uma alusão à ascensão ao paraíso que atravessa os sete céus da cosmogonia muçulmana até chegar àquele mais cristalino, mais perto de Deus.
Essa transparência atinge seu auge na obra do britânico Asif Khan, uma reinterpretação do Alcorão em que o texto sagrado é escrito com ouro sobre mais de 600 folhas de vidro sobrepostas. Os ensinamentos ganham corpo diáfano nessa caligrafia que se multiplica, se dissolve e invade o espaço da galeria num jogo de sombras e reflexos, a palavra divina tornada espectro luminoso.
É o mesmo efeito da arquitetura da mostra, obra da firma holandesa OMA, liderada por Rem Koolhaas, arquiteto vencedor do Pritzker muito solicitado pelas ditaduras do Oriente Médio. São estruturas de tecido branco translúcido, que abraçam as obras nas galerias ou destacam sua presença como fortes raios luminosos que se estendem em vertigem até o teto.
Do lado de fora, numa galeria ao ar livre, o trabalho de Lucia Koch, raríssima presença latino-americana na mostra, também modula a atmosfera. São grandes painéis de tecido colorido e translúcido, finíssimas cortinas, que balançam no vento e enchem de cores o espaço exposto à luz duríssima do deserto. É como se a artista arquitetasse um novo prisma, tão belo quanto artificial, através do qual podemos enxergar de outro jeito a vida, aquilo bem no meio entre o inferno e o paraíso.
O jornalista viajou a convite da Bienal de Artes Islâmicas