“Deus é pai”, afirma em uníssono a maioria dos cristãos. A oração mais conhecida do cristianismo é o “Pai Nosso”. No entanto, na tradição, defende-se que Deus não é macho nem fêmea, ou seja, não tem sexo ou identidade de gênero. Além disso, poucos sabem que na Bíblia, livro sagrado de católicos e protestantes, Deus também é tratado como mãe.
Em Isaías 46.3, livro do Antigo Testamento, Deus carrega seu povo na cintura e útero. Em Gênesis 49.25, Jacó abençoa seu filho José a partir dos “seios e útero” de Deus. Em Isaías 42.14 é dito que o Criador rompe o silêncio com “gritos de parto”! Oseias 13.3 compara Deus a uma ursa ao perder seus filhotes. Deuteronômio 32.11-12 descreve Deus como uma águia fêmea. Jesus, lembrado as sensibilidades divinas, usou a figura feminina da galinha: “quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas” (Mt 23.37). Todas essas metáforas pertencem ao imaginário feminino e materno.
Antes de prosseguir, é preciso explicar que todo dizer sobre Deus é metafórico, simbólico. O que nos resta fazer é sempre usar atributos e características humanas para descrevê-lo. O nome disso é antropomorfismo. E historicamente as imagens masculinas prevaleceram. Para alguns, especialmente mulheres, a possibilidade de compreendê-lo para além do gênero masculino ou como pai, é uma forma de reanimar sua fé.
Já recebi mulheres em meu gabinete cujos traumas com o pai abusivo ou maridos violentos as impedem de adquirir qualquer relação afetiva com a divindade cristã paterna. Em um país onde a violência de gênero aumenta, a figura de Deus como pai ou masculino causa em algumas pessoas uma experiência religiosa dolorosa.
Um caso em especial foi de uma jovem que me disse: se Deus é pai, eu não conseguiria amá-lo. A mesma experiência também pode ser aplicada a homens que encontram na metáfora do pai a representatividade do descaso, abandono, humilhação e violência.
O relatório “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil” (2025) revela que as principais testemunhas de violência doméstica são os filhos. E considerando que grande parte desses dados se aplica a parceiros violentos, não é de se estranhar a imagem do pai ser associada à insegurança e à maldade.
Não seria justo construir relação causal entre a violência masculina e Deus ser chamado de Pai. No entanto, para algumas mulheres e mesmo homens, não há lugar para um Deus que seja apresentado somente como pai.
Não defendo que a oração seja mudada de “Pai Nosso” para “Mãe Nossa”. Contudo, em um país cuja violência de gênero é generalizada, a maternidade de Deus é uma forma de revelar o lugar do feminino na experiência religiosa dos cristãos e serve de solidariedade a todas as mães vilipendiadas. Deus é pai, mas também é mãe! Para muitos, isso significaria o resgate de sua espiritualidade e devoção.